A dissertação de mestrado “Formação permanente de educadoras/es da educação do campo: uma reinvenção na perspectiva freireana”, dos pesquisadores Elson Augusto do Nascimento e Valter Martins Giovedi, do Programa de Educação da Ufes, é a mais nova publicação em e-book da editora e você encontra disponível em nosso site aqui: https://bit.ly/3c6ZFEG
Foto ilustrativa
A pesquisa tem como objetivo contribuir com os estudos e produções acerca das práticas de formação de educadoras e educadores, em especial, de escolas do campo, visto que é fundamental construir condições que favoreçam a relação entre os professores e professoras e os trabalhos formativos, reinventando-os a partir das perspectivas defendidas por Paulo Freire, que sempre sustentou que o papel do professor “... é estimular a dúvida, a crítica, a curiosidade, a pergunta, o gosto do risco, a aventura de criar".
Entrevistamos os dois educadores para saber um pouco mais sobre essa importante pesquisa.
1 - Pode contar um pouco sobre as suas vivências com escolas no campo que deram origem a pesquisa do livro?
Valter Martins: Comecei a trabalhar com Educação do Campo em 2014, quando, vindo de São Paulo, cheguei à UFES para lecionar no curso de Licenciatura em Educação do Campo/ campus Vitória. A partir de então, houve uma intensificação da minha relação com sujeitos camponeses e escolas do campo.
Um dos momentos mais significativos dessa relação, para mim, tem sido o de trabalhar com formação continuada de professores/as de redes públicas do Espírito Santo que possuem escolas do campo. Como sou adepto da concepção freireana de educação, os trabalhos de formação continuada que coordeno têm sido baseados nessa perspectiva.
Paulo Freire elaborou uma concepção de formação continuada de educadores/as bastante peculiar, que ele denominou de “formação permanente”. Essa concepção consiste na articulação entre a formação e a reorientação do currículo da escola. Ou seja, a formação tem o professor(a) como sujeito da reflexão sobre a sua prática, tendo em vista a compreensão dos limites e contradições da mesma, para que possa construir coletivamente, com seus/suas colegas de trabalho, práticas novas, compromissadas com a transformação da realidade social.
Este livro é produto do esforço do Élson e do meu, enquanto orientador dele, de sistematizar os resultados que alcançamos em uma dessas experiências de formação permanente de educadores/as de escolas do campo na perspectiva freireana. Esperamos que o resultado possa inspirar outras iniciativas que acreditam que na perspectiva de Paulo Freire nos processos de formação continuada de professores/as do campo.
Elson Augusto: Bem, a relação pesquisa, produção da proposta do livro e as escolas do campo tem sua combinação e origem na minha trajetória quando combino aspectos, tais como: minha história de vida, estudante e educador. Vivi toda minha infância no campo, fui estudante nos anos iniciais, em sala multisseriada e nos anos finais em escola no campo.
Combinando há ainda, a seguir, a minha trajetória profissional de educador para estudantes que moravam no campo e tinham uma vida com vivências e experiências muito semelhantes à minha.
Há ainda, a experiência profissional que vivi como coordenador pedagógico de educadoras e educadores de escolas do campo, com uma realidade com as adversidades e características iguais às que vivenciei quanto eu estudei nos anos 80, nessa realidade. Toda essa junção de elementos afetivos e profissionais trouxeram o desafio de aprofundar e querer compreender esse contexto das escolas do campo, a fim de superar concepções equivocadas, empatizar-se tendo por base conhecimentos teóricos e científicos dessa realidade tão negligenciada que é a Educação do Campo e desafiar-se a propor contribuições para reinvenção da formação “em serviço” desses guerreiros e guerreiras que assumem a docência nesse contexto educacional, tendo como referencial para essa
caminhada de investigação o educador, pensador e filósofo Paulo Freire e sua defesa do paradigma da formação permanente e da pedagogia da libertação.
2 - Quais são as maiores carências das escolas no campo?
V.M : Já existe uma larga produção acadêmica que faz o diagnóstico da situação precária da maioria das escolas do campo do nosso país. Portanto, não é fácil enumerar as carências sem o sentimento de que alguma muito importante ficou de fora.
Podendo selecionar, eu destaco as seguintes: falta de infraestrutura adequada; grande rotatividade de professores(as), na medida em que quase todos são contratados pelo regime de designação temporária (DT); a rotatividade gera a falta integração do/a professor/a com a comunidade atendida pela escola; formação inicial de professores/as muito precária, sendo que grande parte foi feita no sistema de EAD; formação continuada em serviço que não estimula a criatividade; currículos pré-estabelecidos que não partem das necessidades concretas dos estudantes; por fim, destaco a velha conhecida desvalorização salarial dos/as docentes: é difícil imaginar que professores/as possam refletir e transformar suas práticas quando não têm tempo para isso, pois precisam trabalhar em duas escolas e turnos e quando não têm recursos para investir da própria formação.
E.A: Ainda, infelizmente, existe na realidade das escolas do campo, uma imposição de modelos de práticas pedagógicas e curriculares, baseada fortemente a realidade urbana e uma tendência em negar a realidade do campo, suas potencialidades, conhecimentos e principalmente de negação das conquistas, direitos e diretrizes que marcam a organização do processo de direito a aprendizagem e ao conhecimento assegurando para a realidade campesina.
Ainda, é forte as marcas de desigualdades e negligências de uma escola digna e menos desigual para crianças camponesas. Incluo, ainda a precariedade das estruturas, equipamentos marcados por estruturas que se quer oferecem o mínimo que um docente necessita para organizar um trabalho coerente e digno e em consonância com a realidade do campo. Sem contar com ausência de formações alinhadas com a realidade das escolas do campo.
É lamentável presenciar os inúmeros desafios, revelados pela realidade das escolas do campo, em razão da não garantia, por décadas, dos preceitos constitucionais e dos marcos legais operacionais de legislação específica para definição dos parâmetros de qualidade do ensino público conquistado para as populações do campo.
Com minha experiência profissional já vi professoras e professores, de forma solitária, desempenhar a gestão do tempo da sala de aula, de trabalho didático com as/os estudantes, e além disso, preparar o cozimento do alimento, receber a merenda escolar e demais materiais encaminhados à escola, controlar a frequência do transporte escolar, permanecer em tempo de extra-jornada com as/os estudantes, que aguardavam o transporte escolar e assegurar as atividades de limpeza do prédio escolar. Penso que ainda há muito que fazer para superar essa realidade educacional de escolas brasileiras existentes no campo.
3 - Quais os pontos mais importantes da pesquisa que contribuem para a formação do professor nas escolas do campo?
V.M: Entendo que a pesquisa é um conjunto articulado de princípios e etapas que formam uma unidade. Quando algum dos aspectos é sacrificado, o trabalho global de formação permanente freireano é prejudicado. Por isso, destaco dois pontos, mas não podemos dissociá-los do trabalho no qual eles ganham sentido mais profundo.
O primeiro ponto é a criação das condições para que os/as educadores/as possam, periodicamente, se reunir para realizar reflexão e planejamento coletivo. Sem esse espaço-tempo, é impossível um trabalho eficaz de melhoria da educação. Se essa possibilidade não é garantida, estaremos fadados a ter uma educação em que professores/as serão meros cumpridores de tarefas impostas pelo sistema para que eles cumpram, sem condições de serem efetivamente sujeitos da sua prática pedagógica.
O segundo ponto é a perspectiva de construção do currículo a partir de temas geradores que nascem do trabalho de investigação que a escola faz de levantamento das situações mais significativas da comunidade atendida. A formação de educadores/as do campo que não garante que o trabalho a partir de temas geradores seja desenvolvido, tende a servir aos pacotes curriculares empresariais, que não têm compromisso com a transformação da realidade. São pacotes a serviço da geração de lucro para quem vende uma mercadoria para ser consumida nas escolas.
E.A: O meu principal marco foi o contato aproximado com a literatura de Paulo Freire, suas provocações e reflexões. Percebi, a partir dessas vivências de formação experienciadas durante a pesquisa e estudos, que há, em seus pensamentos críticos e progressistas sobre ser professor, a possibilidade de promover formação de professoras/es, capaz de colocar em diálogo teoria, prática e experiências reais como educadores e educadoras, numa relação verdadeira com a realidade e suas situações-limites. Foi então que me propus ao acompanhamento, à observação, ao registro e à análise de um Programa de Formação de educadores e educadoras de escolas do campo, numa perspectiva freireana, a fim pensar e apresentar proposições para sua reinvenção e ousar apresentar o que estamos apresentando com o material do e-book.
Acredito que o ponto de partida para toda e qualquer superação desse modelo reprodutivista, alienante, neoliberal e bancário de educação, só é possível com oportunidade repensarmos criticamente as formações em serviço que somos submetidos e nos tornamos como educadoras/es capazes de repensar criticamente essa realidade, em especial, a da Educação do Campo. Questionando a serviço de quem e do quê nossa prática está? Da formação humana que utiliza a pedagogia que liberta e emancipa sujeitos ou da pedagogia da resposta que aliena e oprime, a serviço da meritocracia?
4 - Vivemos um momento muito complicado para a educação com falta de investimento do governo e a falta de valorização de professores e pesquisadores, como você vê esse momento e como podemos resistir e lutar contra?
V.M: A educação é um espaço que contribui no engendramento da cultura de um povo. O sentido que a ela é dado tem a ver com o mundo que queremos construir e quais valores éticos e políticos queremos para o futuro. O futuro desejado pelos que hoje governam o Brasil é de violência, intolerância, injustiças, falta de solidariedade, cultura do cada um por si etc. Por isso, eles travam uma cruzada cultural que tem a educação como uma de suas frentes. Essa cruzada na educação tem dois pilares articulados: a privatização da educação e a introdução da ideologia conservadora na escola.
A falta de investimentos e de valorização vem ao encontro do projeto privatizador. Quanto mais fracassar a educação pública, tanto mais poderão eles avançar na ideia de que só funciona o que é privado. Isso é desmentido o tempo todo pela realidade, mas mesmo assim essa é uma ideologia poderosa.
A introdução da ideologia conservadora se expressa na perseguição de professores/as a partir de projetos como Escola Sem Partido, de militarização das escolas, de revisionismos do currículo e materiais didáticos e a imposição de bases curriculares padronizadas.
A resistência a isso é feita pelo trabalho cotidiano dentro dos espaços em que nós educadores/as atuamos, principalmente na sala de aula. Se as pessoas que conviverem conosco puderem experimentar, pelo diálogo, a maravilha que é o ambiente democrático em que todos são livres para expor o que pensam, tematizando a realidade em que vivemos, tanto mais aprenderão a enxergar os propósitos daqueles que querem fazer da educação uma mercadoria e espaço de inculcação da visão conservadora e/ou reacionária de mundo.
A resistência que se forja na sala de aula se espraia encoraja e estimula que todos/as ocupem os vários espaços públicos de tal modo que, ao serem valorizados, passam a ser defendidos pelo povo. Quando chegamos aí, é muito difícil de alguma força política, mesmo que poderosa, consiga transformar a educação em objeto de seus interesses particulares.
E.A: A resistência a esse momento de obscurantismo e de desserviço à educação brasileira, em especial, a cátedra e ao trabalho das/aos educadoras/es, se materializa pela proposta apresentada de contribuição de olhar criticamente para a realidade formativa e reinventá-la. Proposta que é trazida pelo conteúdo deste e-book, quando nos traz a formação permanente de educadoras/es da Educação do Campo, numa perspectiva da reinvenção, orientada por princípios freireanos. A proposta em si, é para nós uma resposta de resistência, de lutas a pautas de desgovernos pautadas em políticas marcadas pelo fortalecimento dos direitos individuais e negação dos direitos humanos, criminalizando e censurando à docência, desvalorizando a pesquisa.
A formação apresentada é um paradigma que visa nos colocar para repensar o lugar que a formação ocupa no dia a dia docente e quais são as possibilidades de fortalecimento de nossa autonomia de docência nos é trazido por meio dela.
Compreendo que não podemos voltar e refazer um novo começo, mas sei que é possível a construção de um outro final. Essa persistência e esperança é entendida por mim como uma tarefa constante do/a educador/a progressista que busca combinar linguagem crítica com a linguagem da possibilidade, assumindo-se em uma práxis de denúncia e anúncio, de forma metódica.
5 - Paulo Freire, figura central na dissertação, é um importante educador brasileiro e uma grande referência para todos na área, como os ensinamentos dele se aplicam na sua pesquisa?
V.M: Freire foi o referencial teórico que orientou todo o trabalho de pesquisa que resultou no livro que publicamos neste momento.
Podemos dizer que os ensinamentos dele "aplicaram-se" em quatro níveis: 1. Oferecendo princípios filosóficos que fundamentam o trabalho de educação crítico-libertadora; 2. Oferecendo uma compreensão específica do processo de formação continuada de educadores/as, denominado formação permanente; 3. Oferecendo uma metodologia de organização do trabalho formativo que nos permitiu chegar a algumas etapas de concretização da proposta junto aos educadores/as em formação. 4. Oferecendo categorias que nos permitiram analisar a experiência criticamente para poder aperfeiçoá-la em situações futuras de trabalho com formação permanente.
Entendo que Freire não é o único referencial, porém, a meu ver, é o que melhor responde às necessidades do nosso povo para que a educação possa de fato servir à emancipação humana.
E.A: Os ensinamentos e princípios de Paulo Freire atravessam todo o processo da pesquisa e momentos da dissertação, desde o instante que se começa a tecer a história dos envolvidos na pesquisa em si. A base de todo o trabalho está vinculada ao paradigma de formação permanente desenvolvido por Paulo Freire, durante a sua experiência como secretário de Educação, no município de São Paulo.
Há um pressuposto dele que trago com imenso valor, que é quando ele nos traz sobre a formação de professoras/es, e afirma que é preciso a compreensão de que o ser humano é um ser inacabado e que precisa ter, como ponto de partida, a tomada de consciência da condição ontológica dessa incompletude e como princípio para a formação permanente de educadores/as.
Entrevista feita pela jornalista e escritora Lívia Corbellari , idealizadora do projeto Livros por Lívia e responsável pela comunicação da Editora Pedregulho.
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